5.9.10

Olhar de gringo

Assim que visualizei a geografia carioca das alturas, a batida do coração multiplicou seu ritmo, como cada vez que acontece ao voltar ao Rio, confirmando que a decisão de deixar tudo para trás e recomeçar minha vida na cidade pela qual me apaixonei, estava certa.

Ao se abrirem as portas do desembarque no Galeão, reconheço o Armando, no posto da Riotur, e o fato de encontrar alguém conhecido, logo depois do pouso, me fez sentir ainda mais em casa. No ápice da Copa do Mundo, Armando me entrega um exemplar da Guia Oficial do Rio, com toda a programação que a prefeitura preparou para comemorar o maior evento do planeta.

Quando abro a revista dou com várias fotos da "altinha" na praia. A fotografia de Ipanema, na segunda folha, me lembrou da saudade que tinha de praticar esse jogo que aprendi há um ano e que havia chamado a minha atenção já nas primeiras visitas ao Rio, pelo ano de 2005. Me impressionava a graça com que batiam a bola, a precisão, os corpos dos jogadores e jogadoras (me perguntava se esse corpos resultavam desse esporte). No verão do 2007, quando retratei a cidade para o guia inglês Time Out, me pediram fotos dessas rodas nascidas nas areias cariocas. Naquela época, nem imaginava que um dia eu poderia estar participando de uma.

Depois de suportar temperaturas de um dígito na minha cidade natal – Buenos Aires -, o Rio me premiou com um delicioso sol de inverno e o céu completamente sem nuvens, o que levou a me aventurar na praia de Ipanema, ao mar que essa tarde parecia caribenho e a meu esporte favorito do momento, a altinha. Mas a bola só se manteve no ar por menos de 3 minutos, não por culpa dos jogadores – claro que não -, mas por causa de 2 guardas municipais se lançaram sobre nós com a ameaça de deter a bola e levá–la para a polícia. Como? - perguntei surpresa - mas por que? - Choque de Ordem! É proibido jogar bola na beira do mar antes das 5 da tarde, e se insistirem, teremos que confiscar a bola - me dizia o guarda enquanto apontava para as duas patrulhas paradas na Vieira Souto. Às 5 da tarde, em pleno Julho, não tem mais sol –pensei - olhando a praia vazia naquela terça feira ensolarada.

Choque de Ordem ou ordem invertida?

Me senti uma criminosa, culpada de um delito gravíssimo. Fui me sentar ofuscada, com a sensação de que algo estava errado, e não era eu, nem a bola, nem aquela tarde maravilhosa ou a praia.
Dias mais tarde decidi indagar mais fundo sobre este famoso "Choque de Ordem". Me apresentei como jornalista e cidadã estrangeira diante dos guardas municipais – uns 8 - reunidos numa das tendas da prefeitura, e pedi que por favor me explicassem em que consistia a campanha. Com muita amabilidade, um dos guardas me falou que a primeira medida tinha sido a reordenamento das barracas. E enquanto mostrava as novas estruturas brancas, todas iguais, eu lembrava daquelas barracas coloridas, com seus nomes chamativos que permitiam que, em pleno verão, duas pessoas conseguissem marcar um ponto de encontro no meio daquele enxame humano. – Era feio, desprolixo, cada um fazia o que queria, tudo colorido, justificava o guarda. Com o coração apertado eu pensava justamente nessa característica propriamente carioca, essa capacidade de gerar um colorido desmedido, esplendoroso. A cor, a marca pessoal do Rio de Janeiro, foi a primeira coisa o Choque de Ordem tirou da praia.
- A nossa principal função é vigiar a bola, não deixar que a altinha seja praticado na beira do mar, porque atrapalha as pessoas que estão passeando – continuava o guarda -. E também a segurança, os roubos.
Eu não podia acreditar que a primeira medida fosse proibir a prática do esporte e a segunda evitar os furtos. Por acaso, não deveria pelo menos, ser o contrário?
E o lixo? perguntei. O guarda não soube bem o que responder, manifestando que não havia nenhuma posição concreta a respeito da quantidade de lixo que todo dia, apesar do impecável trabalho da Comlurb, jaz nas areias de uma das praias mais lindas do mundo. Mais uma vez, não será que a ordem está toda trocada? Não deveria ser prioridade a segurança e a limpeza? Porque não pegam a pessoa que logo depois de comer o seu potinho de açaí, o deixa largado na areia como se fosse desmaterializar-se magicamente? Porque nós, os próprios frequentadores da praia, temos que chamar a atenção, seja com a palavra ou com placas (como as que pendurou o designer Marcio PXE, ver projeto), de quem enterra suas guimbas de cigarro, seus copos descartáveis, suas latinhas de cerveja (o único lixo que é recolhido na hora pelos vendedores de alumínio, graças a Deus), suas filipetas, suas fraldas usadas!!! Será que este não é um delito muito mais grave do que jogar bola – ao menos nos dias de semana - junto ao mar?

Do Arpoador ao Leblon, existem 6 tendas da Guarda Municipal, onde se amontoam pelo menos 5 homens, que trabalham de 8 da manhã às 5 da tarde, ou seja, 30 pessoas, 63 horas por semana com pelo menos 2 carros de patrulha, e tudo isso para controlar a garotada jogando bola. É isso que chamam Choque de Ordem??? Por que não colocam ao menos um desses guardas naquela parte da ciclovia, no túnel que liga Botafogo a Copacabana, onde eu e todas as minhas amigas, na maioria "gringas", fomos assaltadas? Ou na entrada das passarelas subterrâneas que unem o Aterro à Praia de Botafogo, de onde tiraram minha bicicleta, apontando me um revolver calibre 38? Ou nesse parque espetacular planejado por Burle Marx – um dos mais bonitos que já vi entre muitos outros que conheci no mundo todo - o Parque do Flamengo, que a partir das 3 da tarde já é terra de ninguém?

Na teoria, a prefeitura promove a “altinha” na principal publicação destinada aos turistas, mas na prática, pode arruinar as férias de qualquer um que se aventure a praticar este esporte saudável numa das praias mais paradisíacas do mundo – também já rodei por praias dos 5 continentes - se não fosse pelo lixo. É pra jogar ou não? Qual a mensagem afinal?

Manifestei grande parte dos meus pensamentos ao guarda municipal, que obviamente não tem culpa de nada, pois ele está ali cumprindo com o seu dever. E me propus a não deixar passar mais tempo, lembrando que com as pequenas ações podemos mudar o mundo, já que a mudança global começa pela mudança individual. Nenhum idealismo, apenas lógica pura.

Ordem? Sou completamente a favor, mas acho que a ordem está invertida e, por favor, nada de choques.

Esta matéria não acaba aqui, pois ainda falta saber a opinião dos barraqueiros, turistas, frequentadores da praia e dos jogadores. Continuará.

Ana Schlimovich
versão em português: Marcio PXE

versão em espanhol

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom! É isso ae, a realidade carioca (ou brasileira), tudo invertido!

Rio no Mapa disse...

Obrigado pelo comentário!
O mundo todo esta de cabeça pra baixo, verdade. Mas cabe a gente vira-lo ao contrário.

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